Relatório técnico do Banco Mundial confirma o que todos já sabiam: falta de planejamento e de gestão no saneamento somados ao descompromisso do governo paulista e da Sabesp na recuperação de mananciais já desperdiçou bilhões de R$ e aumentou perigosamente o risco de colapso do sistema hídrico.
Entrando na segunda crise hídrica
Desde 29 de julho de 2018 o sistema Cantareira está novamente em estado de alerta, operando com menos de 40% de sua capacidade. Esses níveis são mais baixos do que estavam no mesmo período anterior à crise hídrica de 2014 e, consequentemente, preocupam especialistas e a população. Surpreendentemente a Sabesp — empresa concessionária do Sistema Cantareira — novamente toma a dianteira e vem a público para negar mais uma vez a possibilidade de um racionamento.
Além do Cantareira, cerca de metade do abastecimento de água dos municípios da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) provém do Sistema Alto Tietê, que praticamente coincide com os limites físicos da RMSP. 70 km do Rio Tietê ainda estão completamente poluídos e inaproveitáveis para a captação de água, limitando a expansão do fornecimento do sistema, mesmo após R$ 8 bilhões já despendidos na despoluição. Ainda estamos longe de mudanças impactantes dentro da RMSP.
Ainda assim a Sabesp fundamenta suas atuais garantias de suprimento de água nas obras de interligação entre esses e outros sistemas realizadas após a crise de 2014/15. Sem substancial ampliação da capacidade dos sistemas — despoluição e recuperação dos mananciais — a falta de água disponível em um sistema implicará em aumento da retirada de água e transferência de outro sistema, inclusive o do rio Paraíba do Sul, ameaçando o abastecimento regular do Estado do Rio de Janeiro.
Essa “guerra pela água” ilustra claramente a crise de governança, a falta de planejamento e a má gestão que, em São Paulo, é perfeitamente exemplificada pelo exaurimento precoce do Programa Mananciais. O programa foi concebido como continuação e extensão para outras fontes do Programa Guarapiranga, concebido e executado nos anos 1990. O Programa Mananciais pretendia justamente dar seguimento e aumentar a integração dos diversos atores em ações amplas e eficazes. Seu objetivo era promover o saneamento ambiental e a recuperação de mananciais contaminados, de forma a aumentar a autonomia do Sistema Alto Tietê, fundamental para o abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo.
O fim do programa Mananciais
O programa Mananciais representou um enorme esforço de articulação entre Governo do Estado de São Paulo, a Sabesp, municípios e o Banco Mundial ao longo de quase uma década, tendo sido iniciado em 2002, com acordo de empréstimo junto ao Banco Mundial firmado em 2009, efetivando-se em 2010. Entretanto, revelou-se insuficiente para garantir o sucesso das ações e contribuir substancialmente na superação das crises de abastecimento. Nos sítios governamentais constata-se facilmente uma crescente carência de documentos de acompanhamento das ações do programa a partir de 2010-12, justamente o período de início de execução do programa, período que coincide com o início do atual governo.
Não obstante, assim como se dá no caso do Rodoanel/Dersa, a falta de transparência, accountability e controle interno afortunadamente são compensados por atores externos. Por pura sorte da sociedade paulista, a falta de relatórios oficiais de prestação de contas do Governo do Estado de São Paulo é eclipsada pelo criterioso documento de avaliação do empréstimo elaborado pelo Banco Mundial. O documento coincide justamente com os oito anos de governo Alckmin e engloba o período da Crise Hídrica de 2014, fornecendo uma ponderação valiosíssima sobre a inação do governo do Estado de SP e da Sabesp no período.
As conclusões do Banco Mundial sobre o mau desempenho do Governo do Estado e da Sabesp
O relatório de avaliação classifica o resultado geral do programa e o desempenho das partes contratantes como insatisfatórios para todos os participantes (incluindo o próprio agente financeiro, o Banco Mundial).
O Banco Mundial afirma claramente que, durante a implementação, a Secretaria Estadual de Saneamento e Recursos Hídricos (SSRH) adotou uma postura seletiva, priorizando apenas aquelas atividades diretamente alinhadas com as atribuições-core da Secretaria. A coordenação das atividades, portanto, não foi satisfatoriamente realizada por ninguém. Como exemplo, a participação da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) no projeto sequer se efetivou, sendo completamente abandonada depois da crise hídrica em 2015. [1]
No que se refere à Sabesp, o relatório não é menos contundente. A “abordagem seletiva” durante a implementação do Programa Mananciais por parte da Empresa também focou apenas aquelas atividades que se alinhavam intimamente com os objetivos principais de rentabilidade da Sabesp: a expansão e melhoria da rede de água e esgotamento. Não houve por parte da Sabesp foco claro e determinado ou o estabelecimento de ações prioritárias. [2]
O documento deixa bem claro que a Sabesp demonstrou “comprometimento inconsistente” em relação ao projeto, mudando radical e oportunisticamente de postura apenas quando “precisou de apoio para lidar com a crise hídrica“. Ademais, a Sabesp nunca dedicou uma equipe exclusivamente ao acompanhamento e à supervisão das atividades do projeto, submetendo-as às prioridades da empresa e mantendo a responsabilidade diluída em sua estrutura corporativa normal. [3]
As conclusões do Banco Mundial sobre a atuação da Sabesp são contundentes, revelando inclusive falta de competência técnica: “no caso específico do Programa Mananciais/SABESP, houve claras falhas organizacionais — não na direção do programa em si, mas no apoio à gestão do programa. A falta de apoio à gestão foi um fator determinante que resultou em documentos técnicos abaixo do padrão (especialmente o ToR) o que resultou finalmente no atraso ou cancelamento de várias ações e iniciativas — especialmente os estudos técnicos sobre qualidade da água“. [4]
Não podemos deixar de sublinhar a percepção evidente para os observadores do Banco Mundial de que havia um “descompasso entre as prioridades do projeto e as prioridades institucionais. Grandes corporações como a SABESP reagem contra as atividades, como as incluídas no APL, que não estão alinhadas com as prioridades da corporação, resultando em bloqueios na implementação“. [5]
Tendo sido a maior beneficiária nos acordos de empréstimos do Banco Mundial para o Projeto Mananciais, como se pode ver claramente no arranjo institucional, a Sabesp recebeu grande volume de recursos emprestados para diversas ações, das quais — até o início da crise hídrica — “primou por executar aquelas atividades que eram do interesse imediato da própria empresa“.
É claro que a Sabesp não é a única responsável pela desarticulação e ineficiência da política estadual de saneamento, mas — como empresa concessionária — é quem mais se beneficia da situação de governança ineficiente, falta de clareza e pouca transparência das políticas públicas no setor. Como é uma das maiores operadoras de água e esgoto do mundo e é uma empresa de capital misto (congregando capital e interesses públicos e privados), possui enorme peso econômico e político, poder que ela não relutou em utilizar para tentar impor seu modelo de negócios monopolista, inclusive subjugando o interesse público quando convém aos interesses de seus dirigentes e acionistas. Há evidências claras desse proceder desde os anos 90.
Consórcios frágeis e a consolidação do monopólio da Sabesp
A descentralização político-fiscal-administrativa introduzida com a Constituição de 1988 garantiu mais recursos financeiros, atribuições relevantes no provimento de serviços públicos e autonomia política para sua concretização aos municípios. Vários deles inovaram e realizaram com sucesso consórcios intermunicipais na área de saneamento ambiental, mas somente no que se referia a resíduos sólidos.
Apenas mais recentemente, após a Lei Nacional de Saneamento Básico (Lei Federal 11.445/2007), a figura do consórcio se apresenta como uma alternativa para a gestão de serviços públicos de água e esgotos. Digno de nota é que a Fundação Prefeito Faria Lima – Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal (CEPAM), entidade de suporte aos municípios, elaborou em 2010 — juntamente com o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) — material para apoiar os municípios paulistas na elaboração de seus planos de saneamento, incluindo o apoio na formação de consórcios. Entretanto o governo seguinte — em 2015 — extinguiu o CEPAM sob a alegação de “economia de gastos”, deixando os municípios paulistas sem o suporte especializado com que contavam desde 1968.
Sem lançar mão de consórcios, as prefeituras — sozinhas — têm muito mais dificuldades em lidar com a grande questão do saneamento ambiental e dos recursos hídricos. Mesmo a prefeitura da Capital do Estado encontra problemas maiores que sua capacidade. Durante a gestão Haddad na Prefeitura de São Paulo, a quase totalidade dos projetos de saneamento (listadas como “Meio Ambiente”) tinha menos de 50% de execução em 2013. Hoje, na gestão de Bruno Covas, a lista de metas em meio ambiente e saneamento aparentemente inexiste.
As tentativas de privatização frustradas
Outro marco legal importante para a área de água e esgoto foi a Lei de Concessões de Serviços Públicos, de 1995 (Lei Federal 8987). A partir dessa data, nove municípios paulistas buscaram fazer a opção por privatizar seus sistemas de saneamento, enfrentando grande resistência de diferentes setores [6]. O caso é que apenas o município de Limeira conseguiu lograr privatizar seu sistema para a Lyonnaise des Eaux, em 1995 [7].
O caso de Guarulhos
Já em maio de 1996 o prefeito de Guarulhos — o município até hoje apresentado como o “grande vilão” na poluição do rio Tietê – enviou um Projeto de Lei à Câmara Municipal pedindo autorização para conceder à iniciativa privada a gestão completa dos serviços de água e esgotos, uma vez que o município comprava água por atacado da Sabesp e não era suficientemente abastecido por ela [7]. O PL foi aprovado na Câmara Municipal em 13 de junho de 1996, por 18 votos a 3. No entanto, a votação foi anulada pela justiça por questões formais.
O pesquisador Dr. Oscar Sanchez sintetiza com clareza a grande questão por trás das disputas sobre a privatização:
“Por outro lado, a Sabesp, interessada em operar no município, se propôs a assumir a concessão, comprometendo-se a alcançar, em cinco anos, 100% de cobertura das redes de água e 85% das de esgotos, que nesse momento eram de 86% e apenas 52%, respectivamente. Para chegar a esse resultado, a empresa calculava investir R$180 milhões, mas o prefeito alegou que pelo estudo da empresa de consultoria por ele contratada seriam necessários investimentos da ordem de R$780 milhões e que outras empresas estavam dispostas a investir esse valor.
Considerando a licitação de cartas marcadas, o vice-presidente da Sabesp, Antônio Marsiglia Neto, declarou em audiência pública que a água fornecida pela Sabesp ao município era subsidiada e ameaçou cortar o subsídio caso o SAAE fosse transferido a uma operadora privada, o que causaria um brusco aumento de tarifas. Além disso, a empresa não se comprometeria em abastecer de água suficiente esse município, porque daria prioridade a outros municípios da região, de gestão pública (Jornal da Assemae, junho de 1996, p. 11).”
Frente aos empecilhos judicialmente levantados e à chantagem, o resultado foi o cancelamento da concessão. Pouco antes do cancelamento, dirigentes da Lyonnaise procuraram a Sabesp para negociar regras claras para uma futura compra de água por atacado. A Sabesp evidentemente não tinha interesse em se deixar regulamentar. Nas palavras do pesquisador Oscar Sanchez: “o poder de coerção da Sabesp teve também um papel relevante. No cálculo da empresa, o importante era não deixar as francesas ganharem. Mantendo a gestão com a prefeitura, poderia obter a concessão com os próximos prefeitos“.
Embora faça parte da Região Metropolitana de São Paulo — que deveria favorecer a integração e a cooperação entre os municípios da RMSP e o Governo Estadual — o município de Guarulhos permaneceu sozinho na gestão de seu sistema de água e esgoto, mesmo tendo PIB per Capita e Índice de Desenvolvimento Humano abaixo da média do Estado de São Paulo.
Monopólio da Sabesp
Não obstante inúmeras dificuldades, a prefeitura obteve melhoras e sucessos, logrando em 2014 licitar uma Parceria Público Privada, vencida pela OAS. Imediatamente o então governador Geraldo Alckmin moveu ação judicial contra o município, alegando inconstitucionalidade das leis que viabilizaram a PPP. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por 14 votos a 11, barrou a PPP em 8 de abril de 2015. A decisão controversa e juridicamente frágil trouxe imensa insegurança jurídica.
A Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto declarou que a decisão comprometia o investimento da iniciativa privada no setor de saneamento. Evidencie-se que — mesmo após a crise hídrica — o principal partido da base do governo paulista — o PSDB — “surpreendentemente” foi contra os interesses da livre concorrência, investimento e iniciativa privados para garantir os interesses monopolistas da Sabesp.
Pertinente lembrar que — segundo delação da Odebrecht à Operação Lava Jato — a Sabesp foi envolvida em esquemas de corrupção em benefício à campanha de Geraldo Alckmin.
Outro lado da Justiça: mais evidências de uma gestão frágil
Mesmo com claros sinais de escassez de chuvas desde meados de 2013, a má gestão dos Sistemas Cantareira e Alto Tietê levou os reservatórios de água da cidade de São Paulo à beira do colapso, obrigando a Agência Nacional de Águas (ANA) e o DAEE a impor novos limites volumétricos de retirada de água do Sistema, periodicamente renegociados com a Empresa a partir de março de 2014. A partir de dados da própria empresa foi constatado em rigoroso artigo científico que a gestão dos recursos hídricos do sistema Cantareira pela Sabesp foi uma das principais responsáveis pela crise.
Outras ações judiciais nos permitem vislumbrar mais detalhes da atuação da Sabesp. A profunda falta de transparência e de publicidade na gestão dos recursos durante a crise hídrica levou o Ministério Público de São Paulo a instaurar dezenas de inquéritos e ações sobre perda de água em diversos municípios, captação ilegal de água etc. Essas características demonstram claramente a precariedade da gestão dos recursos do estado de São Paulo como um todo e a falta de planejamento e integração que levou o abastecimento de várias regiões do estado ao colapso — ou à beira do colapso.
Em junho de 2016, por exemplo, o Poder Judiciário Federal teve de expressamente fazer constar em sentença garantia — quanto à Sabesp — em relação a publicidades dos dados de fiscalização e monitoramento de vazões de retirada de água, níveis de reservatórios, transferências entre sistemas, além de determinar “que a SABESP abstenha de restringir, dificultar ou impedir as eventuais vistorias ou inspeções que se fizerem necessárias, sem prévio aviso, pelos órgãos outorgantes, inclusive representantes dos Comitês das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, no exercício da gestão compartilhada, descentralizada e participativa“.
Fica evidente a falta de supervisão e de controle sobre aquela que é uma empresa de economia mista e uma das maiores operadoras de água e esgoto do mundo. De fato o enorme peso econômico e político da Sabesp deveria por si só colocá-la no centro dos holofotes sobre regulação e modelos de operação, o que surpreendentemente não acontece. O que ocorre é que, na prática, a Sabesp detém muito mais estabilidade institucional, autonomia financeira, organizacional e poder de pressão do que os órgãos que deveriam atuar como seus supervisores, tornando a cooptação um risco enorme que não tem merecido atenção proporcional por parte do Governo do Estado.
A recente autorização legal para criação da nova holding que incorporará a Sabesp torna essa desproporção ainda mais escabrosa, mas isso fica para um próximo capítulo em que examinaremos mais a fundo as relações entre a empresa e sua agência reguladora, a Arsesp.
Referências e citações
[1] “During implementation, the State Secretariat for Water, Sanitation, and Water Resources (Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos, SSRH) (the GESP Project’s leading entity) adopted a selective approach by focusing on the activities directly aligned with the entity’s core institutional mandate—the development of technical tools that contribute to improving and implementing the water resources policies in the MRSP. The expected roles of the SMA and the CDHU in the project did not materialized. The CDHU participation was dropped in the 2015 restructuring. The GESP Project and the APL shared the same PDO, which was not consistent with the project components and activities. The disconnect increased as the implementation focused on some of the activities included in the project.”
[2] “The SABESP adopted a selective approach during implementation by focusing on the activities that were closely aligned with the corporation core mandate: the expansion and improvement of water and sanitation infrastructure. […] the project’s broad focus and general description of the activities did not clearly guide investment or site priorities.”
[3] “105. SABESP showed inconsistent commitment to the Project during implementation but changed completely once it needed support to deal with the drought crisis. The Project was embedded in SABESP organizational structure, lacking a dedicated team to develop Project activities. However, as the Project was embedded in SABESP structure special procedures like the Bank procurement rules faced difficulties, since these could not be streamlined jointly with the procurement rules regularly followed by SABESP. As GESP did, SABESP also adopted a selective approach by focusing implementation on the activities clearly aligned with the corporation priorities.”
[4] “In the specific case of the Mananciais/SABESP Program, there were clear organizational flaws — not in program management per se but in program management support. Lack of management support was a determining factor that resulted in subpar technical documents (especially the ToR) and ultimately delayed or even prompted the cancellation of several actions and initiatives — especially technical studies on water quality.”
[5] “Project and institutional priorities mismatch. Large corporations such as the SABESP react against activities, such as those included in the APL, that are not aligned with the corporation priorities, resulting in implementation blockages.”
[6] Para uma compreensão mais aprofundada recomendamos a leitura do artigo do Dr. Oscar Adolfo Sanchez, o qual serve como referência fundamental ao presente texto.
[7] Após dificuldades iniciais, Limeira hoje tem seu sistema operado pela BRK Ambiental (Grupo Odebrecht) e está entre os municípios com melhores índices de saneamento do país, segundo levantamento da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES).
[8] Artigo A Privatização do Saneamento, publicado na revista São Paulo em Perspectiva, da Fundação SEADE.
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